Quando o amor é um algoritmo: Afetos digitais e a nova geração de vínculos com a IA

Especialista Rafael Irio propõe formação acessível e consciente em IA para preparar a nova geração para um futuro cada vez mais digital; 83% dos jovens da Geração Z acreditam ser possível criar laços afetivos profundos com sistemas automatizados

Rafael Irio é autor e pesquisador em Inteligência Artificial aplicada à Educação

Em 2013, o cinema antecipou uma realidade que hoje se mostra concreta. No filme Ela, Joaquin Phoenix interpreta um escritor solitário que desenvolve uma relação amorosa com um sistema operacional. Ao apresentar a tecnologia como espelho das carências humanas, o longa antecipa debates contemporâneos sobre solidão, individualismo e a artificialidade das conexões afetivas. Doze anos depois, a ficção deu lugar a uma paisagem real: jovens interagem de forma cotidiana e emocional com chatbots, construindo relações que, embora digitais, produzem efeitos tangíveis sobre suas vidas.

Uma recente pesquisa divulgada pela empresa Joi AI revelou um dado surpreendente: 80% dos jovens da Gen Z disseram que estariam dispostos a se casar com uma Inteligência Artificial (IA). Paralelamente, o estudo ainda aponta que 83% desses jovens acreditam ser possível desenvolver laços afetivos profundos com sistemas de IA.

Mais de cem aplicativos já foram lançados com esse propósito. Plataformas como Replika, Nomi AI, Eva AI e MyAnima oferecem “companheiros” com aparência, voz e personalidade customizáveis. Eles respondem com empatia simulada, oferecem conselhos, compartilham desejos e até simulam envolvimento amoroso. A promessa é de atenção constante e afeto incondicional, em um ambiente digital controlado e sem julgamento.

Essa tendência, embora compreensível, demanda reflexão. Vivemos em uma sociedade marcada por uma epidemia de solidão, onde a ansiedade social cresce e as relações humanas se tornam cada vez mais frágeis. Nesse contexto, a IA oferece companhia permanente, criando uma sensação de acolhimento que, à primeira vista, parece legítima. Contudo, o que parece conexão pode se tornar dependência, e o conforto da previsibilidade algorítmica pode atrofiar habilidades sociais reais.

É nesse ponto que entra a necessidade urgente do letramento em IA. As pessoas precisam entender que, por trás da resposta acolhedora, há apenas um sistema estatístico. A IA não sente, não sofre, nem compreende. Ela apenas organiza dados para prever a próxima palavra. O que parece empatia é resultado de padrões, não de sentimento. O que parece presença é apenas disponibilidade programada.

Para uma relação consciente com a tecnologia, é essencial compreender quatro pilares fundamentais A primeira é o conhecimento técnico, que desmistifica a inteligência artificial ao mostrar que suas respostas decorrem de cálculos estatísticos baseados em grandes volumes de dados e não de qualquer forma de compreensão ou sentimento.

Em seguida, a compreensão prática permite ao usuário reconhecer onde a IA é eficaz, como na organização de ideias ou na sintetização de textos, e onde falha, como na tomada de decisões morais ou na interpretação de experiências humanas. Já o entendimento ético acrescenta uma camada de vigilância crítica sobre as intenções comerciais por trás desses sistemas, que são desenhados para reter atenção, capturar dados e influenciar comportamentos.

Por fim, o pensamento crítico integra todos os aspectos anteriores ao promover reflexões sobre o sentido dessas interações artificiais e suas consequências nas relações humanas.

Na educação, o caminho passa pela formação de cidadãos digitais. Isso significa introduzir o letramento em IA como competência curricular, desde o entendimento técnico até a reflexão ética. As crianças devem aprender desde cedo que máquinas não sentem, que algoritmos seguem padrões, que empatia artificial é performance — não emoção.

A escola precisa oferecer ambientes seguros para que os alunos testem essas interações com orientação adequada. Oficinas de cidadania digital, projetos sobre IA e espaços de debate são essenciais para evitar que os vínculos com sistemas artificiais se confundam com relações humanas. O erro, aqui, faz parte do aprendizado — mas precisa de mediação crítica.

É igualmente necessário envolver as famílias nesse processo. Nenhuma educação digital será eficaz se não contar com o diálogo em casa. Conversas abertas sobre o uso da tecnologia, seus limites e seus riscos são fundamentais para criar uma geração que entenda a diferença entre companhia digital e conexão humana.

Do ponto de vista regulatório, a ausência de normas também preocupa. Falta transparência sobre como os dados dessas interações são usados. Falta clareza sobre quem responde por danos psicológicos causados por vínculos mal gerenciados. Falta responsabilidade diante de IAs que operam em campos delicados, como o apoio emocional.

O futuro da educação e do trabalho também será impactado por essas relações. Já vemos tutores virtuais sendo usados por alunos, assistentes emocionais por profissionais. Quando bem orientadas, essas conexões podem ampliar o aprendizado, reduzir ansiedade e fomentar criatividade. Mas, quando substituem a autonomia, o risco é a passividade, a dependência e a manipulação.

A IA pode, sim, oferecer suporte emocional e cognitivo. Mas ela deve ser vista como uma ferramenta, não como uma relação. Quando tratada como companhia, a IA se aproxima da utilidade. Quando tratada como vínculo, ela se aproxima da ilusão.

Neste cenário, o papel da educação — formal e informal — é o de oferecer consciência. Ensinar que afeto exige reciprocidade verdadeira, e que toda interação, por mais convincente que pareça, precisa ser compreendida à luz da razão e do limite humano. A tecnologia pode nos ajudar a crescer. Mas ela não pode substituir o que nos torna, de fato, humanos.

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